Construir uma ponte é difícil. Fisicamente porque é possível que você ainda não tenha acesso ao outro lado. Metaforicamente porque talvez você não queira ter acesso ao outro lado. A publicitária e podcaster mamileira Juliana Wallauer frequentemente diz que é melhor construir pontes que provar pontos. Que é melhor buscar o encontro de pessoas, ideias e ideais do que a autocelebração de reforçar os próprios (pré)conceitos. Talvez sim. Talvez seja. Mas ha algum tempo eu quero falar de uma ponte que foi uma barreira. E uma barreira quase intransponível.
Todo início do ano somos bombardeados com propagandas de filmes “indicados ao Oscar”. E foi assim que conheci Selma, indicado a dois Oscars em 2015 (Melhor Filme e Melhor Canção Original o qual foi vencedor). Apesar do nome de tia, o filme de Ava DuVernay fala de uma cidade do Estado do Alabama nos EUA. Ele conta uma história real e começa com uma tijolada no seu peito: Annie Lee Cooper, uma senhora de 53 anos vivida por Oprah Winfrey tenta, em vão, conseguir o direito de votar. Você vê que não é a primeira nem a segunda e talvez nem a décima vez que ela passa pelo processo. Mas o processo foi feito pra que qualquer arbitrariedade possa ser cometida contra ela. O processo foi feito pra não permitir que ela consiga. E ela não consegue. E, tão claro quanto a sensação de que ela vai tentar de novo, é a certeza de que aquele processo vai derrubar esta senhora novamente. O processo foi feito pelas pessoas que estão no poder pra manter as coisas como estão. E, caso você não tenha se dado conta, as pessoas que estão no poder ali são brancas (incluindo o pequeno poder do funcionário que atende a senhora idosa) e a Oprah é negra. O sistema constrói barreiras pra se proteger. O sistema é foda, parceiro.
Se um grupo não vota, não é votado. Quem não é votado não é eleito e tampouco representado. Aí você pode me dizer que é bobagem, que uma pessoa pode defender os direitos de todos. E, na teoria, num mundo perfeito onde os representantes do povo tivessem o mínimo de empatia e interesse, qualquer pessoa poderia defender o interesses de todos. Mas na prática não é o que acontece. Políticos (de todo lugar do mundo) tendem a querer se perpetuar no cargo e, pra isso, precisam atender interesses de dois grupos: sua base eleitoral e seus financiadores de campanha. Se você não tem direito a voto e não me dá dinheiro, porque eu deveria te ajudar contrariando os interesses de quem me mantém no poder? Pois é. Por isso que o mais indicado é que o sistema democrático seja o mais diverso possível, trazendo representantes de todos os tipos de pessoa da região a ser gerida. Na cidade de Selma em 1965, os negros eram 57% da população e, no entanto, apenas 1% dos indivíduos negros na idade permitida eram eleitores registrados. Não parece justo e não parece acaso.
A insatisfação num momento onde as manifestações pelos direitos civis cresciam nos EUA levou a uma crise sem precedentes. Assim, muitos negros de Selma resolveram atravessar a ponte nos limites da cidade e, pacificamente, marchar 85 km até a sede do governo do estado em Montgomery. Lá iriam solicitar que o governador acabasse com as arbitrariedades do sistema de cadastro de eleitores. O sistema não gosta de mudanças, a força policial local não permitiu a manifestação e a tensão cresceu. Cruzar a ponte se tornou um marco. A resposta violenta da polícia, principalmente na 2ª tentativa de travessia, conhecido como Domingo Sangrento, gerou mais revolta e mais simpatizantes a causa. Porque essas pessoas que já não tinham direto a voto não teriam também direito de manifestar sua insatisfação? Só por causa da cor da pele? Pessoas que provavelmente se proclamavam “cidadão de Bem” levaram os filhos pra ver a polícia bater em manifestantes que só reivindicavam pacificamente seu direito ao voto. Eu tenho dificuldades em cruzar essa ponte, em dialogar com quem tem pensamento semelhante a estes indivíduos nos dias de hoje. Porque se colocar acima dos outros?
No filme, vemos o reverendo Martin Luther King Jr. tendo mil crises e dúvidas. Será que estaria correto em apoiar e insistir no protesto? Sua presença na cidade trouxe atenção nacional ao tema, mas uma solução não violenta era a melhor proposta? Estaria ele colocando a vida das pessoas em risco? Dava pra buscar outra saída? Dava pra adiar o direito ao voto? Dava pra fingir que o atentado a bomba em Birmingham nunca aconteceu? Não dava. Não deu. A resposta da policia foi violenta como sempre, o reverendo foi preso, outros líderes religiosos se manifestaram a favor da causa e os manifestantes cresceram em número e cor. Latinos, asiáticos e até brancos se juntaram a causa. Não dava pra dormir em paz com pessoas eram massacradas ao vivo na tv por pedirem pacificamente o direito ao voto.
Em 21/03/1965, os 300 manifestantes autorizados pela justiça puderam enfim cruzar a ponte. Três dias depois, cerca de 25 mil pessoas assistiram ao discurso do reverendo King em frente a sede do governo estadual em Montgomery. Pressionado, em 15/03/1965, o presidente entregou ao Congresso um projeto que, cinco meses mais tarde, veio a se tornar a Lei dos Direitos ao Voto que visava, entre outras coisas, evitar as discriminações e arbitrariedades no processo eleitoral. A ponte passou, a regra mudou e tudo isso foi um grande avanço. Mas se engana quem pensa que todos os problemas se acabaram ali. Selma é um baita filme. E deve ser visto pra lembrar que há pouco mais de 50 anos as coisas eram bem diferentes. Os obstáculos eram ainda maiores. Precisamos lembrar que vivemos tempos de crise e que as crises afloraram respostas individualistas. Mas um grande rei uma vez disse: “O que nos une é maior do que o que nos separa. Em tempos de crise, os homens sábios constroem pontes enquanto os tolos constroem barreiras.”
Não há solução mágica e, se você observar, ainda hoje o sistema (lá, aqui e no resto do mundo) tem desequilíbrio. E aí, como faz? Bom, precisamos lembrar que a democracia é um direito e um dever. Um dever pesado porque você não pode delegar as escolhas que impactam diretamente no rumo da sua vida pra alguém e voltar a pensar no tema em 4 anos. Pra funcionar requer uma atenção e vigilância constante. Pra garantir que a sua voz está sendo ouvida e, se você for uma pessoa empática, que a voz das demais também.
Por isso, fica a sugestão do ótimo documentário ‘A 13ª Emenda’ também da diretora Ava DuVernay e também concorrente ao Oscar. Lá você consegue ver os impactos de um sistema construído pra explorar um grupo de pessoas. E como somos enganados com pequenas bravatas midiáticas. É preciso lembrar que avançamos muito mas ainda assim temos muito o que melhorar. Mulheres só foram autorizadas a votar no Brasil a partir de 1928. Em algumas regiões (o direito da mulher ao voto só virou algo nacional em 1934). Pessoas do mesmo sexo só foram autorizadas a se casar no Brasil em 2013 (apesar de ainda não ser uma lei). Em muitos lugares do mundo esse casamento não é permitido. Em outros, o fato de se relacionar com alguém do mesmo sexo é crime. Note que não estou falando de benefícios, estou falando de direitos básicos. Direitos que muita gente tem mas são negados a alguns. E por absolutamente nenhum motivo a não ser preconceito. Sim, ainda nos faltam muitas pontes a construir mas nós vamos chegar do outro lado.