Lanchas são como carros. Motos são como jet-skis. E marcas… são como psicopatas? No início do século XXI, um livro que falava da evolução da comunicação das marcas com seu público foi referenciado há exaustão e tinha um toque de filme-catástrofe. Em ‘Sem Logo’ (2002), a autora Naomi Klein falava em como as marcas estavam se esforçando pra se relacionar com seu público adotando um “tom de voz” e uma personalidade mais “humana”. Mas falava principalmente em como esse processo gerava conflitos de imagem dada a distância entre o tom de voz dessa persona amistosa na comunicação e as atitudes práticas mais duras (e as vezes até desumanas) das empresas no dia a dia. E dado que isso tem mais de duas décadas, você tem todo direito de me perguntar: essa abordagem ainda é relevante? Eu diria que não trago certezas, mas esse texto é uma reflexão sobre ações recentes e bastante palpáveis.
‘Still Processing’ é um podcast do NYT que tem como host um homem e uma mulher que escrevem para a revista da publicação impressa americana e abordam temas relevantes para a cultura negra. Num episódio de Janeiro do distante ano de 2019, eles abordaram a jornada de Colin Kaepernick e a campanha de 30 anos do ‘Just Do It’ da Nike estrelada pelo atleta. Caso você não conheça, Colin é o jogador de futebol americano que começou a protestar contra a violência policial primeiro se sentando e depois se ajoelhando durante o hino nacional no início dos jogos. Isso provocou uma enorme briga com a NFL (a liga de Futebol Americano) e com o então candidato Donald Trump ainda durante o período de campanha para as eleições nos EUA de 2016. No podcast acompanhamos como uma manifestação contra a brutalidade policial virou uma polêmica pelo direito a se manifestar. E, depois, em como a Nike se arriscou ao fazer uma campanha com a cara de Kaepernick, como isso deu muito certo como posicionamento da cia e eles viram seu valor de mercado decolar (principalmente após algumas pontuais manifestações contrárias).
Grande parte do texto acima foi escrita em 2019, logo depois de ouvir o podcast e passar um tempo pensando a respeito. Me chamou atenção a clareza com que os hosts do podcasts trataram do caso contra a forma apaixonada com que as pessoas respondiam sobre o tema. Aí eu fui pesquisar mais, ler mais, conhecer mais e acabei não voltando a escrever… até o fim da semana passada. Então vamos os pontos.

O jogador estava em baixa e só fez isso pra aparecer? Não.
Sejamos práticos, essa desculpa de que alguém que se manifesta como vítima de violência “só quer aparecer” é de um preconceito supremo. E de uma burrice também porque historicamente há mais chance de que numa denúncia “contra o sistema” a vítima seja soterrada com ataques do que o criminoso. Por que? Porque ele conta com a simpatia de um sistema. Foi assim, por exemplo, com as denúncias de assédio contra o produtor de Hollywood Harvey Weinstein. As vítimas foram desacreditadas antes, durante e até depois da chuva de denúncias do #MeToo. O cara foi acusado de abuso e/ou assédio por mais de 70 mulheres. Eu disse SETENTA e mesmo assim ainda há quem tente negar os fatos. Essa proteção aconteceu só porque o produtor em questão era um homem branco milionário? Não, ela aconteceu porque outros tantos faziam A MESMA COISA e não queriam correr o risco. Em maior ou menor grau esse comportamento abusivo se repete e nenhum desses indivíduos quer ser ameaçado com uma insurgência de vítimas. ‘O sistema é foda, parceiro’.
Um exemplo? Na semana passada o goleiro Aranha falou ao Troca de Passes do Sportv. Em 2014, quem não conhecia o goleiro passou a conhecer quando ele foi atacado por ofensas racistas durante um jogo do Santos contra o Grêmio em Porto Alegre válido pela Copa do Brasil. As ofensas foram captadas pelas câmeras, repetidas à exaustão na TV, uma denúncia foi feita pela procuradoria ao STJD e o Grêmio foi eliminado da competição antes do jogo de volta. Só que a pecha de “problemático” colou no jogador. Tanto que nessa entrevista ele manifesta ter sido perseguido nos demais jogos que fez na Arena do Grêmio depois disso. Não houve vitória, ele não teve nenhuma vantagem.
É fato que o Quarterback não estava no auge do seu desempenho quando começou a protestar durante o hino. Depois de chegar a NFL em 2011 aos 24 anos, Colin se tornou titular do San Francisco 49ers após a lesão do titular Alex Smith no meio da temporada seguinte. E aí a sua história começou a virar roteiro de filme de Sessão da Tarde porque ele assumiu o time e o levou até o Super Bowl. E não é só isso, durante essa a partida decisiva o time estava tomando um sufoco de 28-6 no 3º quarto do jogo quando acabou a luz no estádio. Quando a luz voltou, 45 minutos depois, eles devolvem o sacode que estava levando até então e chegam na última jogada com chance de virar o jogo e serem campeões. Agora me diga, se você estivesse vendo um filme com essa história diria que o roteirista é um preguiçoso, né? Mas como a vida é sempre mais complexa que a ficção ele não ganhou o campeonato. Ficou pro ano seguinte então? Não. Em 2013 eles chegaram à final de conferência mas perderam pro Seattle Seahawks (que viria a ganhar o Super Bowl).
E aí veio uma temporada ruim em 2014 e o time se desmanchou. Somente 14 dos 66 integrantes da campanha que chegou ao Super Bowl ainda estavam no clube quando começou temporada de 2015. Novo grupo, novo treinador, lesões… e Colin terminou o ano no banco. Em 2016, surgiu a polêmica da manifestação, ele foi sendo escanteado e em 2017 esse cara não tinha mais espaço em nenhum time da liga. O cara foi de destaque por dois anos seguidos, teve dois anos mais ou menos, fez um protesto e acabou. Parece drástico, né?
E você pode dizer que ele não tinha espaço porque caiu de desempenho, que não dava mais pra ser titular e etc. mas aí nós vamos olhar o exemplo de Michael Vick. Em 2007, aos 27 anos, o então QB do Atlanta Falcons foi condenado por envolvimento com rinha de cães e passou 18 meses preso. Ao sair ele teve uma nova chance na NFL ao fechar um contrato com o Philadelphia Eagles onde jogou por 5 anos. E apesar de ter começado bem, o final da passagem de Vick pela Philadelphia não foi brilhante. Mas ainda assim ele recebeu um contrato de $5MM/ano para jogar no New York Jets onde ficou por um ano e começou apenas três partidas como titular. Parece ruim, né? Pois ele ainda recebeu uma proposta de $970k/ano pra jogar no Pittsburg Steelers no ano seguinte. Então atente, quando recebeu essa proposta em 2015, Vick não ia aos playoffs desde 2010 e não ganhava um jogo em fase eliminatória desde 2004 (antes de ser preso)! Mas teve espaço na NFL… mesmo depois de um ano e meio na cadeia e temporadas bem fracas.
É surreal que nem pra ‘role player’ Kaepernick fosse considerado assim que foi dispensado pelo 49ers. Aliás, o FiveThirtyEight fez uma análise mostrando o quão raro é ver um QB com pontuação acima da média ficar desempregado por tanto tempo após uma temporada… e essa análise foi em 2017! Ou seja, três anos atrás o caso de Colin já era uma anomalia pelo desempenho dele em campo. Repara no gráfico (abaixo) que ele teve um desempenho melhor na temporada recém jogada que o citado Michael Vick ao assinar seu último contrato em 2015. Acho que tá claro que o jogador não estava tão ruim e a liga não era tão fechada assim a quedas de desempenhos curtas. Nitidamente o que pesou foi contra algo além do campo.

A Nike foi visionária em defendê-lo? Também não.
Líderes populistas adoram inimigos. Líderes populistas precisam de um inimigo pra se definir. Inimigos lhes dão uma razão de existir e mobilizam seus apoiadores. É como se frequentemente dissessem: “Deixe tudo o que você julgar importante pra depois porque derrotar *esse* meu inimigo é a maior prioridade do momento”. E isso não é nada novo. Até o porco Napoleão usava essa estratégia pra manter toda a Fazenda mobilizada contra o iminente retorno do “traidor” porco Bola de Neve. Atente que “A Revolução dos Bichos” foi publicado por George Orwell há quase 75 anos e já parodiava esse tipo de comportamentos que ele tinha visto anos antes.
Líderes populistas e inimigos (reais ou imaginários) são inseparáveis como goiabada e queijo. E foi isso que o então candidato a presidente encontrou ao ver um jogador protestar de uma forma que era vista como ofensiva por uma parcela mais conservadora da população: eis um inimigo das “tradições patrióticas”. Não há dúvidas que Colin foi escanteado porque a NFL não quis comprar briga com o então presidente eleito dos EUA. Só que a Nike não ficou muito atrás disso.
Segundo o NYT, a Nike quase rescindiu o contrato com Kaepernick quando ele se tornou um jogador visto como “encrenqueiro” (que nem o Aranha, lembra?). Ele tinha um agravante de ser difícil de explorar comercialmente dado que, sem time, a empresa não podia colocar seu nome em nenhum produto da NFL. A decisão de manter o atleta sob contrato foi primeiro pra evitar polêmica. Somente depois, quando o tempo passou e o interesse pela figura do Kaepernick ligada aos movimentos sociais aumentou, a empresa repensou e viu que ele poderia ser um meio para atingir um público específico: o jovem descolado e engajado. Quando a empresa esportiva resolveu envelopar prédios com a face de um jogador tão polêmico nos EUA, ela já sabia onde ele seria considerado uma figura negativa, onde seria a figura positiva e o quanto de cada grupo tinha interseção com seu público-alvo. Entenda, a Nike poderia simplesmente dizer “fascistas também compram tênis” e fingir que nada aconteceu. Tomar partido foi super válido, principalmente porque abraçou o “lado mais fraco” da história que queria dar voz a pessoas pretas sendo assassinadas por quem devia protegê-los. Só que esse movimento da empresa foi friamente calculado. Foi uma aposta sem dúvida, mas decididamente não foi no escuro. E mais do que isso, nunca foi por amor a causa. Mas… precisava?
