Todo dia esbarramos com uma infinidade de mensagens cujo conteúdo, quando olhado com carinho, vai bem além do que se vê. E assim como ‘Rocky, Um Lutador’ (1976), o spin-off recém lançado da série ‘Creed: Nascido para Lutar’ (2015) não é um filme de boxe. Ambos tem boxe mas não são feitos disso. São filmes feitos de uma busca de auto-conhecimento, obstáculos e superação.
Adonis Johnson (filho do falecido Apollo Creed e interpretado por Michael B Jordan) é inquieto, agitado, inconformado e com algo a provar para si. Algo que o deixa incompleto. Esse é o mesmo sentimento de ‘fracasso’ presente no personagem de Stalone na década de 70 e que volta a ser abordado como incompletude no ótimo Rocky Balboa (2006): uma fúria interna contida que precisa ser externada.
Ryan Coogler é um diretor que, em 2013 aos 26 anos e apenas um longa metragem lançado, recebeu a oportunidade de dirigir o filme que ele co-escreveu e penou para “vender” para MGM (o estúdio), Irvin Winkler (o produtor) e Sylvester Stallone (‘o cara’). Em entrevista ao podcast The Treatment da rádio KCRW da California, Coogler disse que a principal motivação na construção do filme foi o relacionamento dele com o pai, especialmente três pontos: 1) O profundo impacto que a história da franquia Rocky teve em sua família; 2) A reflexão pessoal de como seria crescer sem a presença da figura paterna e 3) Testemunhar a luta do pai contra distúrbios neuromusculares no fim da vida. Acredite, toda essa reflexão e sensibilidade é visível na tela do cinema.
E talvez por isso o filme seja tão calcado em relacionamentos. O relacionamento de um homem que cresceu a sombra do pai que nunca viu; que fica dividido entre fazer tudo que é preciso para resolver o seu vazio interior e contrariar as convicções da mãe que o acolheu e amou; um jovem que foge dos estereótipos enquanto constrói um relacionamento amoroso com uma mulher forte e independente. Mas o filme está longe de ser um ‘samba de uma nota só’ e apenas focar no protagonista. A obra tem olhos para mostrar uma mãe tomando uma decisão difícil; a postura de uma mulher diante da deficiência que vai tirar a sua capacidade de fazer o que ama num futuro próximo; a história de um homem que lutou durante toda a vida, viu todos que ama partirem e não vê mais motivos para lutar, etc.. Creed é um filme que conta muito e que sabe abrir muitas portas para ter dramas relevantes em suas continuações sem apelar para ganchos que só aparecem no último minuto.
Um passeio entre o antigo e o novo com música no centro de tudo.
A música sempre foi um ponto alto em toda a franquia e neste capítulo temos Bianca (interpretada por Tessa Thompson), uma cantora e musicista em busca seu espaço na música da mesma forma que o jovem Adonis busca no mundo da luta. Bianca sabe o que quer e não está na tela para ser salva, protegida ou escada motivacional para um protagonista heróico. Então, com uma mulher em pé de igualdade com o personagem título, o roteiro tem a chance de mostrar um conflito bem atual em relacionamentos modernos: as dificuldades que pessoas em pleno desenvolvimento da carreira, que estão focadas em seus trabalhos tem ao montar uma família. A energia de um novo amor pode tirar o foco do momento decisivo na sua trajetória profissional? Apesar de não se aprofundar nos altos e baixos do relacionamento do casal, há material de sobra para ser trabalhado em sequências e espero ver mais de ambos no episódio 2 da nova saga. Principalmente sobre a realização profissional e pessoal do personagem de Tessa.
Sylvester Stallone foi cativado pela dedicação do (diretor e co-autor) Ryan em criar um personagem completamente novo no universo que ele viveu durante 30 anos e julgava aposentado. Vendo as declarações de ambos (Sly e Coogler) sobre o filme, percebo que Rocky e seu interprete acham que o personagem não precisa de nada na vida. Que tinha um ciclo fechado e ponto. Só que ao encontrar um Adonis a procura um treinador, o ‘Garanhão Italiano’ acaba se tornando uma figura paterna. Rocky passa a ter uma função, uma motivação. E vira a referência masculina fora do ringue que o jovem Johnson/Creed não teve. E é um relacionamento bonito, construído de forma divertida (para o público) e respeitosa com o histórico de ambos.
Sobre ‘baby Creed’… Rocky vivia em apartamento minúsculo com dificuldades e se sustentava como cobrador de um mafioso agiota. Adonis não teve mais dificuldades financeiras depois de ser adotado Mary Anne (a viúva de Apollo). Apesar de jovem, educado, empregado e recentemente promovido ele busca resolver outro problema. Balboa lutava pelo estômago, Johnson pelo coração. Um homem precisa ter ambos satisfeitos para viver em paz consigo mesmo. E ambos fazem isso, ambos correm atrás da realização com uma trilha que te coloca no topo de Everest de emoção. Waiting for my moment (que toca nos créditos finais do filme) dá vontade de pular da cadeira e gritar ‘ÉEEEEE!!! P*%#!!!’. As músicas de Creed conseguem juntar elementos da saga original (principalmente I, II e III) e renovar com um com um bocado de hip hop dando um ar crível para trilha do filme de um lutador jovem. Ela respeita o passado e aponta o futuro. Coisa que foi muito sentida, por exemplo, na trilha do remake de outros remakes recentes.
O diretor disse em entrevista que ‘o desafio era fazer um filme para que meu pai ficasse orgulhoso (por ser um fã da franquia) e não apenas uma continuação caça níquel’. As (bem coreografadas e muito bem filmadas) sequências de boxe são um (eletrizante) detalhe. Stallone diz que são dois filmes: o drama e as lutas. Mas eu me arrisco a dizer que o ponto central da história é como essas pessoas todas se relacionam, como cada um lida com suas próprias fraquezas e busca, dia após dia, superar seus obstáculos. A maior luta de Rocky sempre foi para encontrar um significado para a própria vida. Acho que Ryan deixaria seu pai feliz.
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