Isso não é uma crítica

Isso não é uma crítica. Eu não sou crítico. Acredito que crítico tem que conhecer muito de técnicas narrativas e fotográficas pra entregar uma boa análise sobre um filme. Isso requer estudo e bagagem cinematográfica. O que eu me sinto mais confortável em fazer nesse espaço é contar a minha experiência com uma determinada obra. Simplesmente compartilhar com você o que eu senti vendo algo pela primeira vez. E pra vencer a inércia e minha atual falta de rotina regrada em frente ao teclado, o tema deve ser marcante para o bem ou para o mal. Sei que o ódio anda em alta mas prefiro falar do que gostei. Então estou aqui pra falar de um episódio de Black Mirror.

Black Mirror foi uma série que apareceu na minha vida em episódios de podcast. Nos idos de 2013 o Anticast falava sobre cada episódio detalhadamente. Eu ouvia um ou outro pela discussão filosófica mas não tinha visto nada da série. Faz tempo mas já rolava uma preguiça de caçar conteúdo fora das plataformas on-demand/streaming. O tempo e a conveniência me fizeram um defensor do download legal e, um dia, tudo pareceu magicamente na #PagaNóisNetflix. Um milagre. rs

Pra uma pessoa que nunca viu um episódio sequer, eu descreveria Black Mirror assim: um programa que sempre abordou como a entrada de um novo elemento tecnológico no nosso dia a dia estraga ainda mais as relações humanas. E pior, como o bizarro se torna normal numa velocidade impressionante. O piloto sobre a porca e o primeiro ministro choca mas ele não é sobre o dilema do chefe de estado. É sobre a fascinação do público por reality shows. Como o lado mais grotesco da realidade virou um produto imperdível e todos estamos consumindo. Foram muitos episódios em que o roteirista Charlie Brooker nos mostrava o pior do ser humano. O vale tudo pela fama, a sociedade do espetáculo (punitivo), a ética (ou falta de) com inteligências artificiais, as vidas vazias e a preocupação excessiva com o status em redes sociais… só porrada. E foi nesse clima que eu comecei a assistir ‘Hang The DJ’ o 4º episódio da 4ª temporada da série lançada nos últimos dias de 2017.

— ATENÇÃO PARA SPOILERS DA 4a TEMPORADA DE BLACK MIRROR —

O episódio conta a saga de dois personagens, Amy (Georgina Campbel) e Frank (Joe Cole), buscando um par ideal num mundo onde um sistema não só monta os casais mas diz quanto tempo vai durar cada relacionamento. Eu embarco na história e curto a interação entre o casal protagonista no 1º encontro. Mas, infelizmente, o tempo de duração do relacionamento foi frustrante para nós três: 12 horas. Dali por diante eu me senti no lugar da Amy, sendo massacrado pelos encontros ruins marcados repetidamente pelo sistema. Ajuda a me irritar o fato de todas as indagações sobre os pares estranhos feitos a saboneteira falante serem respondidas com “Tudo ocorre por uma razão”. Apesar de todos afirmarem que o sistema acerta em 99,8% dos casos eu só pensava do lado de cá “O sistema é foda, parceiro” e “Vai dar merda isso aí”.

hang_the_dj 12 horas

Sinto que o episódio foi bem construído porque a coisa toda tem traços claustrofóbicos que te sufocam na obrigação em seguir os apontamentos da inteligência artificial/saboneteira. E você começa a entender que só é possível sair de lá com o seu par perfeito pra vida toda. O lugar tem regras, seguranças armados e punições para os rebeldes. Você está preso a isso e vê ambos definharem em relacionamentos ruins por anos… até que há o reencontro. O sistema coloca os dois juntos de novo. Eles voltaram! Ambos amam o reencontro e combinam de viver sem pensar no prazo de validade que o sistema dará. Só serão felizes juntos e ponto. Aí eu penso: Não vamos ter um final triste, certo? Hoje não! Hoje não! Hoje sim… Nosso querido Frank descumpre o combinado com seu par, olha sozinho a validade do (novo) relacionamento e ela (a data) cai de 5 anos pra 20 horas enquanto ele tenta incrédulo evitar o inevitável. O sistema é foda demais. Frank sofre pra caralho e saboreia com culpa as últimas 20 horas junto com Amy até que a tristeza fica evidente e é obrigado a contar pra ela. Eles brigam, claro. E é uma briga sofrida. Pela quebra de confiança entre um casal que se dava tão bem. Um casal que tinha tudo pra ser perfeito e que numa ação pôs tudo a perder.

Eu entendo o medo do futuro dele. E entendo o foco no pressente dela. E, triste, me conformo que hoje o sistema vai vencer. Que vamos ver os dois “felizes” encontrando seu par pra vida depois de serem cansados por uma infinidade de relacionamentos meia boca. E que sozinhos à noite vão pensar “e se?” logo antes dos créditos finais. Eles serão os 0,2% de erro do saboneteira falante. E nós ficaremos com o gosto de papel de bala na boca (quem comeu bala Juquinha de antigamente sabe que é ruim).

Depois que sou convencido por mim mesmo, ambos são avisados que o par perfeito foi definido e eles têm uma oportunidade de se despedir de uma pessoa num jantar. Eu já vejo ‘La La Land’ vindo todo de novo e um universo de frustrações de uma vida não vivida sendo jogado na nossa cara. E então eles se sentam na mesma mesa do 1º jantar. E aí ela vira o Neo de ‘Matrix‘. E se rebela. E eles fogem. E eu vejo o paredão de ‘Show de Truman’ só que com uma escada. E é tudo uma simulação. E 99,8%. E The Smiths (ah o título!)… e eles estão ali se olhando num pub, no mundo real. E vai dar certo. E eu tô quase chorando. E isso só foi possível porque tantas vezes antes Charlie Brooker me disse que a tecnologia tende a potencializar o que há de ruim no ser humano. Mas hoje não. Hoje venceu o amor. E eu acredito nele. E eu não teria a menor condição de escrever uma critica minimamente isenta sobre esse episódio. Talvez por isso eu não seja crítico.

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